terça-feira, 21 de setembro de 2010

do Chico Buarque !

(...)Assim a mulher intensa que é Joana da peça Gota d’Água pode ter sua antepassada na personagem feminina de Sem Fantasia(do primeiro disco de Chico), em que, no confronto masculino-feminino, é a mulher que emerge como o ser forte. Mas para tratar de Joana, tenho que situá-la na peça onde ela aparece, Gota d’Água. Jasão está para abandonar Joana, com quem vive há dez anos e de quem tinha dois filhos, para casar-se com uma jovem rica, Alma, filha do dono do conjunto habitacional em que viviam, e que os explorava, chamado Creoante. E tudo é altamente simbólico, porque a gente percebe que Joana representa o povo brasileiro e Jasão, que é um compositor popular, ao abandona-la está renegando o próprio povo e passando para o ‘outro lado’, o lado dos donos do Poder. Mas paralelamente a essa indispensável interpretação sociológica, há aqui também um confronto masculino/feminino, um debate rude, duro, contundente. É o que pode ser depreendido neste trecho do diálogo Joana/Jasão:

Joana:

Pois bem, você vai escutar as contas que vou lhe fazer;Te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo
Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo.
As marcas do homem, uma a uma, Jasão, tu tirou todas de mim.
O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração,
A primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra?
O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho,
O primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro refrão, o primeiro estribilho.
Te dei cada sinal do teu temperamento.
Te dei a matéria-prima para o teu tutano.
E mesmo essa ambição, que neste momento se volta contra mim, eu te dei, por engano.
Fui eu, Jasão, você não se encontrou na rua
Você andava tonto quando eu te encontrei
Fabriquei energia que não era tua
Pra iluminar uma estrada que eu te apontei
E foi assim,enfim, que vi nascer do nada
Uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, uma alma de homem.
Enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo,eu, vaidosa, orgulhosa de ti, Jasão, era feliz
Eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, porque o que eu não imaginava, quando fiz dos meus dez anos a mais uma sobrevida pra completar a vida que você não tinha, é que estava desperdiçando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha.
Assim que bateu o primeiro pé de vento, assim que despontou um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi ao acervo de Creonte...
Aproveitador! Aproveitador!

Por seu lado, Jasão reconhece esse feixe de energia que lhe significa Joana. E lhe diz:

Jasão:

Você é viagem sem volta, Joana.
Agora eu vou contar pra você, sem rancor, sem sacanagem.
Porque é que eu tinha que te abandonar
Você tem uma ânsia, um apetite que me esgota.
Ninguém pode viver tendo que se empenhar até o limite de suas forças; sempre, pra fazer qualquer coisa.
É no amor, é no trabalho, é na conversa, você me exigia inteiro, intenso, pra tudo, caralho..
Tinha que olhar pro céu pra dar bom-dia, tinha que incendiar em cada abraço, tinha que calcular cada pequeno detalhe, cada gesto, cada passo, que um cafezinho pode ser veneno e um copo d’água, copo de aguarrás.
Só que, Joana, a vida também é jogo, é samba, é piada, é risada, é paz.
Pra você não, Joana, você é fogo.
Está sempre atiçando essa fogueira,está sempre debruçada pro fundo do poço, na quina da ribanceira, sempre na véspera do fim do mundo.
Pra você não há pausa, nada é lento, pra você tudo é hoje, agora, já.
Tudo é tudo, não há esquecimento, não há descanso, nem a morte não há.
Pra você não existe dia santo e cada segundo parece eterno.
Foi por isso que eu te amei tanto, porque, Joana, você é um inferno.

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